domingo, 13 de setembro de 2015

cinema dos sonhos

era um dia ensolarado. o céu estava azul, as árvores dançavam ao sabor do vento, e por entre os galhos e folhas, o brilho do astro-rei dourava a grama, o asfalto e as casas. abri a janela e fiquei admirando a tão bela paisagem que se desenhou em frente de mim.

com o vento, ondas sonoras de um festejo flutuavam em direção aos meus ouvidos. elas, num sutil sussurro, num suave canto, me convidavam a caminhar. assim o fiz: peguei minhas coisas, abri a porta e senti o calor do sol em minha pele. ao colocar os pés descalços na grama, sentia o quão real tudo aquilo parecia ser. e andei.

podia ouvir melhor o som da festa a cada passo que dava. olho para os lados e vejo coisas passarem velozmente. eram flashes, imagens, vislumbres de memórias distantes que tomavam forma ao meu redor. por mais estranho que tudo parecia ser, o som distante continuava a me chamar. e eu caminhava... sentia a brisa calma, podia ver as copas das árvores dançando como numa coreografia exaustivamente ensaiada. tudo era perfeito.

e andei. desci a rua, pisei no asfalto e em pedras soltas espalhadas pelo tapete negro, que era cortado por vívidas faixas brancas e douradas. os pássaros cantavam e assobiavam do alto dos galhos das árvores. e destes, caíam as folhas secas que, ao tocarem o chão, formavam um grande tapete de tonalidades distintas, voando a cada sopro do vento. era a orquestra da natureza fazendo coro com o som que eu ouvia cada vez mais alto.

era certo: me aproximava cada vez mais da fonte de tão agradável som. passei a ouvir os copos cheios brindarem, as vozes e risadas, os talheres batendo em pratos de porcelana fina. música aos meus ouvidos! era uma divertida festa. mas algo estava errado.

apesar de não carregar nada, senti-me cansado. o peso das lembranças que eu passei a não mais reconhecer, das histórias que eu nunca ouvi, dos rostos que não acariciei, das bocas que nunca beijei estavam ali. sem braços, eles me puxavam, tornando minha caminhada rumo à festa mais estranha e cansativa. os acordes doces da sinfonia da natureza estavam fugindo da melodiosa harmonia de outrora. ainda assim, me mantive focado no objetivo.

e cheguei! fui recebido calorosamente. abraços e sorrisos abundavam no grande salão. havia fartura de calor humano, de aconchego, de conforto, mesmo não sabendo o que acontecia e quem lá estava. foi aí que tudo mudou.

senti o peso da caminhada. os rostos que há pouco não me eram familiares, se tornaram marcas presentes do tempo que passou. grandes amigos e amigas, companheiros e pessoas que estimo estavam reunidos ali. alguns com aparências mudadas, transformadas por décadas de vida que não me recordo de ter vivido. muitos sinceramente felizes, agradecendo por eu finalmente ter chegado.

sem ainda entender, foi aí que me vi no espelho: estava velho, rosto enrugado, mãos calejadas, aparência exausta. corri com o pouco de fôlego que havia me restado para fora e olhei para o caminho que fiz. e lá em cima, em frente da casa de onde parti, meu eu mais jovem me fitou, carregando na face um semblante triste.

a luz brilhante lentamente sumiu, dando lugar a escuridão. e nesse instante, compreendi o sentido de tudo. era o fim da minha jornada? talvez.

acordei em seguida, me levantei da cama e percebi que tudo era um sonho. tudo foi tão lúcido e tangível quanto uma vida inteira capturada em intermináveis rolos de filme. em seguida, me dirigi até a janela e a abri, concluindo em seguida: no cinema dos sonhos você é o roteirista, o diretor, o espectador e claro, o protagonista.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

sobre rolês de bike, tombos e a vida

andar de bicicleta é algo que nunca esquecemos. mas até experimentarmos a liberdade de pedalar pra qualquer lugar, sofremos com o desequilíbrio e caímos. e nas quedas, ficamos feridos. sofremos com a dor consequente do joelho ralado ou de algum corte raso na pele. 

mas tudo passa. até mesmo um braço quebrado ou um corte profundo tem, digamos, “conserto”. a dor se desvanece e tudo volta a ser como antes (na maioria dos casos, pois sempre existem as exceções à regra), até que novamente o processo se repete. 

mesmo depois que aprendemos a dar os nossos rolês por aí, a gente sempre acaba dando com a cara no chão. feridas são abertas por fora e por dentro de nós, podendo ser tão dolorosas quanto uma grave lesão ou fratura. é o preço que pagamos pela nossa liberdade de aprender e ser o que quisermos. 

pelo menos o tempo é justo. ele faz com que todas as lembranças, temores, frustrações e dores virem souvenirs na bagagem que acumulamos nessa jornada que a vida é. e eles continuam lá, presentes, constantes, assim como a lembrança dos tombos, da habilidade adquirida e nunca mais esquecida. 

e assim seguimos na estrada da vida, ora sobre rodas, ora caminhando. mas nunca saindo do chão.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

um conto sobre uma vida de batalhas

a vida é a maior batalha que podemos enfrentar.

muitos são nossos adversários. desde a menoridade, somos forçados a travar uma disputa com o mundo. pela nossa sobrevivência, precisamos batalhar contra as variáveis que compõem as situações diversas que nos cercam. pela nossa preservação, nos esquivamos das vis sabotagens praticadas por quem deseja nosso fracasso. pela nossa glória, somos desafiados a vencer nossas limitações, os traumas e os medos que se escondem no âmago de nosso ser.

cada coisa na vida, per se, representa uma luta que varia muito de proporção. ora parecemos gigantes frente às circunstâncias, ora quase desfalecemos e somos subjugados quando estamos no limiar de nossas forças defronte ao nosso adversário do momento.

mas as lutas, por mais pesarosas e exaustivas que sejam, recompensam quem as encaram com brio, equilíbrio e serenidade, superando-as com concentração, honra e resiliência. nas lutas somos aperfeiçoados, pois é através do calor das batalhas diárias que nossa determinação é testada e nosso caráter é forjado.

é através das pelejas - e das gloriosas vitórias - que conquistamos coisas importantes. adquirimos a experiência com o passar dos anos, sendo que esta vai sendo moldada e afiada pelo impiedoso martelo dos fracassos. nos entreveros diários, honramos a memória daqueles que já cumpriram seu propósito na terra e partiram para a Eternidade. amontoamos para nós coisas inumeráveis, memórias indizíveis, amizades duradouras, amores intensos.


a vitória final vem no crepúsculo de nossa existência: ao analisarmos nossa caminhada, perceberemos quão importantes foram os passos escolhidos. e quando o último raio de luz desaparecer no horizonte, marcando nossa transcendência do plano físico para o espiritual, ressoará pelos céus o som da vitória na homérica batalha da vida.

domingo, 2 de novembro de 2014

o peregrino

em cada passada, em cada suspiro, o peso aumentava. as amarras do fardo que era carregado começavam a deixar mais marcas. sob o sol escaldante ou sob o luar duma noite congelante, caminhava em direção ao futuro, mas com o passado sempre presente, sempre constante.

na constante marcha, mais experiências eram acumuladas. faces passavam. eram pessoas que desvaneciam conforme ele prosseguia. e ele andava. atravessava lugares obscuros e iluminados, cheios e vazios, calmos e agitados. ampliava seu rol de sensações sentidas. grandes decepções e sentimentos indescritíveis eram condensados num misto de emoções positivas e negativas. e a bagagem aumentava.

ora em passos trôpegos e vacilantes, ora em passos firmes e determinados, ele continuava a perseverar. nas pegadas deixadas, o volume do que era constantemente acumulado o puxava não para baixo, mas para trás. os nós que mantinham o fardo em suas costas tornavam a caminhada exaustiva, excruciante. diante disso, ele ficava cada vez mais confuso, aturdido, desnorteado.

estava ele caminhando por caminhos errados? deveria voltar as veredas antigas? abandonar alguns hábitos destrutivos adquiridos nessa longa, complexa e cansativa jornada? honrar a memória das faces que já partiram pra Eternidade? assumir de volta o manto do propósito supremo da vida, designado desde sua concepção?


tais perguntas marcavam cada batida do coração, cada toque da sola de seus pés no chão. e com os calos adquiridos, lentamente o jovem peregrino mudava sua direção. e foi-se embora pelos dias, buscando a luz, o sentido das coisas e a liberdade dos laços que ainda o atavam ao seu fardo. 

domingo, 31 de agosto de 2014

soma

a tecla de delete recebeu uma atenção especial naquele dia. eram várias tentativas de se escrever alguma coisa que prestasse. “puta merda, eu dependo disso pra viver”, ecoou na aflita mente a voz do dever. e por falar na mente, de tanto ler sobre os perrengues nos noticiários todo dia a mente dele parecia uma zona de guerra. uma bagunça total.

uma completa anarquia.

a medida em que ele tentava escrever uma linha, um título - em resumo, continuava a tentar sobreviver e cumprir seu propósito através daquilo que escrevia - sua mente tentava se reorganizar.

era crítica a situação.

nem a música, a companheira de todas as horas, o álcool, companheiro dos momentos felizes (ou nem tanto), ou ainda a cafeína e a nicotina, companheiras dos momentos de nervosismo e estresse, podiam ajudar nessa situação. apesar de ele conseguir ter um vislumbre de que o atual momento é passageiro, através do resquício de racionalidade que conseguia achar em meio a balbúrdia instalada em sua psique (vai embora, síndrome da punhetação filosófica), ele não conseguia acalmar esse vendaval de ideias conflitantes.

no meio de tudo isso ele precisava da fuga. não de qualquer fuga, seja ela da rotina, do comum ou de qualquer uma das coisas relacionadas.

era dele mesmo que ele precisava fugir.


respirou fundo. uma, duas, três vezes. fechou os olhos, e começou a se desligar das coisas. do mundo. dos dilemas da vida. das convenções que regem as frágeis, efêmeras e superficiais relações interpessoais.

progressivamente, o estupor ia ocupando mais e mais espaço dentro da mente hiperativa. a dose diária de “felicidade”, que garante ao jovem seus momentos de escape do admirável mundo novo em que vivemos neste século, já fazia efeito sobre os sentidos.

e na soma, assim passei a régua no meu dia, sem saber quando voltaria à realidade.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

atração e efemeridade

tudo geralmente começa com um oi. as coisas evoluem rápido, chegando em seu ápice quando entram em ebulição os desejos que estavam sendo acumulados. e tão rápido quanto a própria escalada da atração mútua entre os dois corpos, dissipam-se o interesse, a paixão e o tesão que causaram tão intensa mas tão breve "relação".

é nessa essa constante efemeridade em que nós, enquanto seres humanos interessados em nossos pares, vivemos hoje. a realidade na qual estamos inseridos no século 21, que por vezes acontece de forma paralela a outras situações similares, como se ocorresse em várias camadas ou em vários níveis, é a bola da vez. está por aí, espalhando-se e se replicando vorazmente, com uma força espetacular.

assim, o ciclo se repete de forma quase mecânica com boa parte das pessoas que conhecemos. no entanto, muitas delas não conseguem se adaptar e sobreviver nessa nova regra, que acaba ditando a nova dinâmica dos relacionamentos interpessoais em nosso tempo. suas memórias são trucidadas sem misericórdia, nem as melhores experiências ou lembranças passam incólumes por essa rotina cruel.

no fim, a força de cada indivíduo vai se dissolvendo num coletivo de mentes que pensam, falam e agem da mesma maneira. todos abdicam daquilo que os tornam únicos em prol da busca por uma vida que nunca possuirão, correm desesperados buscando chamar atenção de pessoas que nunca se importarão.

e assim vivemos nos dias de hoje.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

vila da paz

aquele lugar distante era pra onde minha mente fugia quando ela queria descansar. ao menos não há limites para a imaginação e para as memórias, e assim elas podem transcender quaisquer barreiras que a presença física muitas vezes impõe. uma lembrança, uma conversa, uma foto, uma vista, um som, um olhar, cada detalhe funciona como porta de embarque para destinos certos e específicos, ora próximos, ora distantes.

flutuando pelos céus de um lugar desértico, começo a ver o verde e o azul contrastarem com a paisagem morta. e velozmente minha imaginação chega a cada vez mais perto daquele lugar onde ela encontra sossego. e no som das teclas de um piano velho e desafinado ela pode encontrar alento e afago, nostalgia e esperança, energia e tranquilidade.

trovões distantes anunciam tempos nebulosos lá fora. mas aqui dentro, onde ninguém vê, lá está minha mente, pronta pra encarar mais uma viagem a um lugar distante, bem ao sul de lugar nenhum. nos relâmpagos que cada vez mais se aproximavam do exterior, o interior se fechava, se protegia e se defendia com a luz da iminente escuridão que acompanhava a tempestade.

e na luz cessante de um fim de tarde ímpar, recarregados eram os ânimos da mente através da contemplação. da admiração. da meditação. 

do mais profundo silêncio.


Lago Ezequiel Ramos Mexía, Villa El Chocón, Neuquén, Argentina. 27/12/12